17.2.14

Beni: Mergulho num quotidiano remoto


Deixei-vos a seguir a um meandro do rio, quando Rurrenabaque, a civilização e um mundo (relativamente) familiar se esfumavam no horizonte verde da canópia amazónica. Sem retrovisores no nosso barco, apropriadamente baptizado pela equipa como “Quilombo” (significa, para os bolivianos, “barafunda”), restava-me olhar em frente, em busca de tudo o que de novo me preparava para observar, viver, experienciar. Viajava num limbo, numa curiosidade mesclada com ansiedade, cocktail ambíguo que provocava ora instantes de grande excitação, ora momentos de profunda calma e contemplação. À medida que o primeiro dia se escoava, fluido como o manto líquido sobre o qual pairávamos há horas, numa imponderabilidade que as leis da Física não poderiam explicar, o primeiro impacto com o novo mundo aproximava-se a cada minuto. Após curta paragem numa pequena aldeia, cujo nome soava a algo como “Sussaia” – obviamente placas não havia, e cada pessoa que encontrávamos parecia pronunciá-lo de forma diversa – e que assomava na parede sólida que a floresta desenhava, o nosso destino estava marcado: San Marcos. E ficará para sempre no meu imaginário como um dos locais especiais desta expedição.





Talvez por ter sido o primeiro. Talvez pelas personagens extraordinárias que conhecemos. Talvez pelo entardecer e subsequente amanhecer esplendorosos. Talvez ainda pelo insólito de vermos gentes isoladas e casas de construção precária, à mercê de uma Natureza impiedosa que de tempos a tempos lhes roubava o próprio chão em que se erguiam as suas comunidades, tudo isto numa harmonia que a realidade visível não deixaria entrever.


Eddy conhecia uma das habitantes, Ilda. A sua casa, ao contrário da maioria, tinha chão de madeira. Acordou com ela que nos cederia a sua sala (a construção tinha apenas 2 divisões – sala e quarto – com a cozinha e a casa de banho no exterior). Lá dentro, montámos as tendas, única forma de escaparmos aos implacáveis e perigosos mosquitos durante a noite. Aliás, apesar de tudo o que se afirma e fantasia sobre os perigos das florestas tropicais, os insectos são de longe a maior ameaça. Dois nomes pairaram durante toda a viagem sob a minha cabeça: malária e, sobretudo, dengue. A primeira é comum, medianamente tratável (excepto a variante cerebral, que mata num par de dias, sem cura possível). A segunda é mais séria. Embora no primeiro surto nem sempre seja mortal, o risco é elevado, e especialmente se se tornar hemorrágico as probabilidades de sobrevivência são reduzidas. Mais ainda se estivermos a vários dias da assistência médica mais próxima, como era o caso! Mas, várias semanas passadas sobre o meu regresso, nada se manifestou, pelo que já posso respirar fundo.

Voltando a casa de Ilda, descobrimos nestes dois dias que era uma jovem e resoluta mãe de 3 filhos, 2 dos quais ainda pequenos, com ela. O marido e o filho mais velho andavam longe, a trabalhar na floresta, como madeireiros. Cá fora, a paisagem transmutava-se com a acção imparável do movimento de rotação terrestre. O sol banhava-nos de luz dourada, e eu dividia a atenção entre o cenário único e a máquina fotográfica, que me bailava nas mãos, frenética e ligeira, tantos os estímulos visuais que me atingiam de todas as direcções!




Entretanto, subrepticiamente, um apetitoso cheiro a carne salteada negociava a quente aragem tropical, estimulando os meus receptores olfactivos de forma quase insidiosa. A fome, sim, estava lá e prestes a ser saciada. Eddy chamou, e tendo por companhia uma pequena vara de porcos, de todos os tamanhos e cores, e mais uns quantos mosquitos que se preparavam já para o ataque do crepúsculo, a equipa consumiu o seu o primeiro jantar no Beni.

O serão, esse, revelou-se mais um desafio. Às 20h00 era noite cerrada, e o sono estava ainda bem vadio, em parte incerta. À luz da vela, com a divisão empestada de um fumo denso e acre que picava na garganta e cuja função era manter as nuvens de melgas à distância, jogou-se uma cartada. Sueca! Há quantos anos não ouvia tal nome! As regras tiveram de ser relembradas pelo Inácio, mas a sorte estava do meu lado. Com ás, manilha e rei de trunfo em punho, limpámos os dois primeiros jogos! Sorte ao jogo, azar ao amor, diz-se :-).


Com a noite instalada, supor-se-ia que o silêncio se havia imposto. Puro engano! Ilda era adepta da rádio, talvez a única companhia possível ao fim do dia, e o cantante debitava a altos berros música de ritmos latinos. Cá fora, no céu límpido e negro, impoluto por qualquer tipo de luz eléctrica, uma infinitude de estrelas brilhava, com uma densidade tal que quase se poderia pensar estarem ao alcance da mão. Relutantemente abri a porta de casa e procurei instalar-me na diminuta tenda, tendo por companhia o Tiago, que se tentava ajeitar no chão de madeira. Embalado pela música roufenha do rádio, que não se calou toda a noite, e pelo ganir lancinante de um cachorro mesmo à porta, berrando ao desafio com Enrique Iglesias, adormeci, num sono leve e ligeiramente sobressaltado, mergulhado nesta primeira noite amazónica…


3 comentários:

  1. Anónimo4.3.14

    António, belas imagens, apimentadas com bom texto! ;-) No fim, tens que editar um livro.

    Rui Vale

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  2. António, gosto cada vez mais de te ler, e não me refiro apenas a estes textos amazónicos. Parabéns. Grande abraço.

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  3. Obrigado pelas simpáticas palavras, Rui e Filipe :-). Quanto ao livro, é coisa que está no horizonte...!

    Abraço!

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