22.3.14

Beni: Destino para verdaderos hombres


Puerto Cavinas, destino para verdaderos hombres! anunciava uma placa à entrada da aldeia. Marcando meio caminho na nossa viagem ao longo do Beni, desde logo o nome exalava algo de místico, quase podendo ter sido retirado de uma obra de Emílio Salgari, onde pululariam barbudos corsários, navios à vela com ferozes guarnições e onde o cheiro a pólvora dos combates navais, tocado pela brisa inexistente dos trópicos, seria omnipresente!

Mas, havia um pequeno pormenor: encontrava-me no coração do continente sul-americano, com a mais longa cordilheira montanhosa do planeta nas minhas costas e a maior floresta tropical diante de mim, a separar-me do oceano!


À chegada, um desconhecido Alferes Flores aguardava-nos, braços atrás das costas, uniforme perfeito. Não se passava muito por aquelas bandas, e a chegada de um barco com 4 estrangeiros era digna da sua atenção. Atrás dele, sobranceira ao barranco, uma guarnição militar vigiava o rio, que aqui fazia um meandro vicioso, capaz de comer anualmente metros de terra e que havia já reclamado para as águas barrentas diversas casas em tempos recentes. Digno do surrealismo fantástico sul-americano, o aquartelamento pertencia... à Marinha Boliviana! Num país que não tem mar! O seu mote: "El mar nos pertenece por derecho, recuperarlo es un deber", numa pouco velada referência à disputa que o país mantém com o vizinho Chile quanto ao acesso ao Pacífico.




Tudo se conjugava para que esta viesse a ser, realmente, a minha aldeia preferida nesta viagem. O ocaso ia-se aproximando, mas isso não impediu que o nosso improvisado anfitrião nos fizesse uma visita guiada. Primeiro o aquartelamento, que, para além do jovem Alferes (que, do alto dos seus 25 anos de idade, desabafa que gostava de ali estar porque não tinha que responder a nenhum superior e o trabalho não era duro) contava ainda com 18 homens, cuja função não parecia ir além de ouvir música, fumar e ver filmes pirateados no DVD do oficial. Depois, a parte residencial, bastante harmoniosa, para os standards amazónicos. E, finalmente, a personagem mais inspiradora que encontrei ao longo desta expedição: o médico da aldeia, nascido, criado e formado em La Paz, mas que havia escolhido, por mote próprio, viver ali, com um sentido de missão inabalável, fazendo magia com os parcos recursos que lhe disponibilizava a administração central mas mantendo, ainda assim, um sorriso encantador e contagiante!




À noite, fomos "jantar fora"! Uma pausa dos cozinhados do Eddy, em casa de uma senhora de forte e larga presença, que preparou um não muito original esparguete à bolonhesa, mas acompanhado de yucca frita numa qualquer gordura animal não identificada, que emprestava um sabor delicioso e diferente à nossa dieta de vários dias! Os vizinhos, para além de barulhentos, tinham uma panóplia de animais de estimação considerável. Para além dos universais cães, havia macacos e papagaios. Antes de sair, ainda ajudámos a sintonizar um dispositivo televisivo que funcionava intermitentemente à custa de painéis solares e onde uma telenovela mexicana (Seria venezuelana? Ou até peruana?) mostrava beldades surreais, sobretudo se olhássemos para o entorno de Puerto Cavinas...

Era chegada entretanto a hora das comunicações. Uma cabine telefónica, cujo funcionamento não cheguei a compreender, permitia o contacto com o mundo exterior, no meio de uma escuridão impressionante, com tanto de opressivo como de inspirador. O céu, esse, continuava mais brilhante que um campo diamantífero! Primeiro o Inácio, depois o Eddy e ainda uns locais, todos passaram pela diminuta cabine, com diferentes graus de sucesso no estabelecimento da ligação.





Ainda antes de recolher - desta vez em condições especiais, nas camaratas do aquartelamento, quase dignas de hotel de 5 estrelas, quando comparadas com as noites anteriores - tivemos direito a uma sessão de home cinema, na companhia do Flores e de mais alguns comparsas. O título: Spartacus, numa dúbia versão para televisão, onde abundantes curvas mamárias e sugestivas pilosidades surgiam amiúde, para gáudio (contido, é certo) da assistência!


No dia seguinte, após uma noite particularmente bem dormida, a partida foi difícil. O primeiro banho digno desse nome, num regato nos arredores da aldeia, soube deliciosamente bem. E as personagens que, em menos de 24 horas, se haviam tornado tão íntimas, iam agora ficar para trás, uma vez mais... Para trás, mas não esquecidas. Bem-haja, Puerto Cavinas!


1 comentário:

  1. Uma grande aventura, sem dúvida. Fotos e texto verdadeiramente fascinantes.

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