31.3.14

Beni: O fim. E o adeus.



Adeus. Simples vocábulo, tão formoso quanto pungente, tão doloroso quanto constante na nossa existência...

Por mais que lhe resistamos, por mais que o ignoremos, por mais resolutamente que lutemos para nunca lá chegar, em tudo na vida há um fim. Por vezes surge na curva do caminho, inesperado. Outras vezes começa-se a desenhar no horizonte, ao longe, a uma distância indefinida mas crescendo a cada dia que passa, a cada passo que acrescentamos à jornada. A melancolia amontoa-se, a nostalgia antecipa-se e sentimo-nos impotentes perante o inexorável término... de um dia, de uma viagem, de um compromisso. E tentamos resistir. Prolongar um pouco mais. Espremer ao máximo. Porque foi bom. Porque foi belo. Porque não queremos deixar ir algo que nos fez felizes, plenos, humanos, independentemente da duração, circunstância e ângulo pelos quais o olhemos... Fica-se grato à vida, grato àqueles com quem nos cruzámos e nos coloriram os dias e espera-se poder ter estado à altura do privilégio, de retribuir pelo menos parte daquilo que recebemos.




Assim foi, como em tantas outras ocasiões da minha vida, na viagem, geográfica e interior, ao longo do rio Beni. Sabia que o fim não estava longe. Não tinha data marcada, mas era coisa de dias. Riberalta, o seu nome. Uma cidade estranha, onde os locais mais não tinham que fazer a não ser dar voltas intermináveis de motoreta, até à tontura, numa praça quadrangular, conversando enquanto conduziam, lentamente. E a últimas das imagens que me fica do Beni foi a de uma caçada. Falhada.
Versão curta: nós fomos a uma caçada. E à pesca. E à pesca para caçar. Versão longa: caçar é um dos instintos mais ancestrais do Homem. Começámos como caçadores/recolectores, e desde então, por mais avanços civilizacionais que tenham ocorrido, nunca perdemos essa matriz que, para alguns – eu incluído – parecerá à primeira vista primitiva, violenta, sanguinária mas que, em última análise, constitui(u) nalgumas sociedades a diferença entre sobreviver ou sucumbir. E não há mais forte motivação que a urgência de subsistir.







Fui, em tempos remotos, pescador. Influenciado em parte pelo meu saudoso tio Olivar, cujo indescritível perímetro abdominal nunca parava de me surpreender, e sustentado pela paciência do meu pai, que, não sendo adepto da arte, lá me levava, e ao meu irmão, a pescarias cujo resultado raramente era abundante mas que, em perspectiva, terão sido um precoce alimento para a minha paixão pelos espaços naturais e pela contemplação do meio ambiente. A caça, no entanto, era demasiado sangrenta. E continuo a considerá-la como tal, enquanto actividade lúdica de burgueses abastados que se afirmam “amantes da Natureza”, preferindo matar em vez de estudar, admirar e observar o objecto do seu suposto amor. No entanto, em locais onde a caça faz efectivamente parte da cultura ancestral, aceito e compreendo-a. Na Amazónia, assim como na grande maioria dos locais onde o Homem é ainda e apenas um visitante marginalmente tolerado pelo ecossistema, caçar faz parte do quotidiano das populações. Era inevitável sermos confrontados com isso. Assim, fomos, por duas vezes, à caça. A primeira em El Carmen, a segunda em Trigalito. Ambas se poderão considerar um rotundo fracasso – se as analisarmos pelo número de peças de caça abatidas. Enquanto experiência antropológica, foram absolutamente fenomenais. Sobretudo em El Carmen, onde viajámos quase uma hora num peque-peque (canoa com um motor de rega adaptado), até a um lago, nas margens do rio. Lá chegados, e para nosso grande espanto, a água não desaparecia, e o caminho não existia. Seguimos durante quase mais uma hora, a pé, com água que por vezes quase chegava à cintura, num pântano onde nos imaginávamos constantemente observados que caimões, anacondas, piranhas e outros animais que preferiram permanecer anónimos, para nosso descanso. Missão: ir caçar algo – não interessava o quê – para depois ter isco para pescar piranhas, famosamente carnívoras. Uma nova e diminuta canoa, cuja lotação não ultrapassaria as 2 pessoas, passou a transportar 4! O Tiago e o Eduardo voluntariaram-se para permenecer num montículo de terra, sozinhos. Mais à frente o Inácio teve uma quebra de tensão, no meio da lagoa, e eu sem saber o que fazer com ele, se se fosse mesmo abaixo. Passou, felizmente, deitado numa ruína que havia servido em tempos de cozinha a alguém. A chuva, massiva, fez-nos ainda uma visita, para ajudar. Finalmente os nosso anfitriões surgiram do mato, com 3 aves na mão, ainda a agitarem as asas. Depenadas, passaram a isco para as piranhas.



Mas nada. Nem sinal de vida. Ao fim de uma meia hora de fracas tentativas, desistiram. E eu, embora com pena de não ver uma piranha a surgir das águas negras que reflectiam as nuvens tão dantescas quanto belas, aquiesci. Era assim desde tempos imemoriais. Uma vez vence-se, outras vezes perde-se. E, ao anoitecer, dizemos adeus a mais um dia, gratos por ter sobrevivido, gratos por sermos mais ricos, gratos pelo que a vida nos trouxe, independentemente de fins, sucessos, derrotas ou conquistas. Cada fim significa um principio. Poderemos não saber de quê, mas ele lá estará, à nossa espera...


1 comentário:

  1. Obrigada pela partilha! Gostei das fotos, do texto... Enfim! Adoro viajar e a Amazónia faz parte dos meus planos de viagem há muitos anos, mas ainda não se proporcionou, embora eu sinta que daqui a algum tempo, pouco tempo, lá estarei. ❤️

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