18.11.14

Em palhinhas deitado


Foi em palhinhas deitado que, está escrito nos anais da história, terá nascido uma das mais marcantes figuras da Humanidade. Mas Jesus Cristo, JC para os amigos, não veio ao mundo a quase 4000m de altitude, embalado por um ligeiro ondular do "solo" e escutando ao longe o marulhar discreto da água calma, batendo delicadamente contra os juncos sobre os quais, de forma aparentemente periclitante, eu me deitava nessa noite.

Aconteceu nos últimos dias de um mês de Dezembro particularmente seco, sobre o lago Titicaca. E quando digo "sobre", digo-o literalmente. Flutuando. Em cima de uma ilha precária, com não mais de 30 metros de comprimento, formada por mão humana, que simplesmente é constituída por molhos enfaixados de totora, um tipo de junco colhido nas extensas margens do lago, a baixa profundidade, e sobre a qual foram erguidas pequenas casas, habitação tradicional de uma etnia diferente da de terra firme e que, segundo pesquisas recentes da National Geographic, terá uma das mais antigas linhagens genéticas de que há registo. Para além das casas, também as embarcações tradicionais, relembrando vagamente barcos vikings, eram (e ainda são) feitas de totora!


A sensação de, a cada passo, sentir o chão afundar-se, mas sem ir verdadeiramente ao fundo, é única. Parece quase um daqueles insufláveis para crianças (mas nos quais qualquer adulto minimamente são se pelaria por saltar loucamente!). Não há chuveiros, a melhor casa de banho é mesmo um recanto na margem da ilha e o frio é intenso, cortante e límpido. O pequeno almoço aguarda-nos, mas o nascer do sol, replicado por mil nas minúsculas ondas do Titicaca, é mais urgente! A toda a volta, o olhar enxerga apenas uma planura aquática que parece inverosimilmente infinita e que só os picos mais altos das nevadas montanhas dos Andes ousam perturbar, lá ao fundo... A minha lista de nascer e por-do-sol épicos é já extensa, mas os de Uros terão sempre um lugar de destaque!

O povo que ergueu estas ilhas douradas pela primeira vez, os Uros, tê-lo-á feito por motivos defensivos. Como um iceberg, têm cerca de 2 metros de altura (dos quais apenas uns 40 ou 50cm ficam acima da linha de água), e vão sendo renovadas a cada 9 a 12 meses, com novos feixes de juncos, colocados debaixo das construções que são erguidas por robustos homens à força de braços. Em tempos idos, caso necessário, as ilhas podiam ser... movidas para paragens mais seguras, ludibriando assim os atacantes! As ilhas têm ainda (hoje para efeitos decorativos) torres de vigia, com as maiores albergando 10 famílias e as mais diminutas 2 ou 3. A sua língua foi-se perdendo com o contacto próximo que tinham com o povo Aymara, na região de Puno, a maior cidade da redondeza nas margens do Titicaca, calculando os estudiosos que se tenha extinto definitivamente há cerca de 500 anos atrás. Com a conquista por parte dos Incas, os Uros tiveram de pagar pesados impostos, chegando a ser levados como escravos...




Hoje, é um dos "segredos" turísticos mais mal guardados dos Andes. Mas a grande maioria dos visitantes limita-se a dar uma volta de barco pela manhã, desembarcando apenas por minutos. Olha, mas não vê. É à noite que a genuinidade se revela. Dormindo lá. Sentindo-se esmagado pela escuridão. À volta de uma fogueira no chão (estranha combinação, fogo e palha seca!!!), só com o luar e um par de milhões de estrelas por companhia, as anfitriãs soltam gargalhadas bem-dispostas e contam-me como é viver, no século XXI, numa ilha sem electricidade, água ou casa de banho. E surpreendem-me pela sagacidade e acutilância do discurso. Não são pobres rurais, isoladas por falta de opções. São pessoas que carregam com orgulho uma herança intangível, imaterial que, não sendo feita de pedra e tijolo, lhes corre viva nas suas veias, cujo olhar negro da pequena mas intensa Saida, a nossa estrela por uma noite, é inequívoco testemunho!


2 comentários:

  1. Olá António, fotos fantásticas, principalmente as nocturnas, e fizeste-me voltar a este sítio único, e a lembrar e sentir de novo tudo o que "não cabe" numa foto. O frio, o silêncio, os cheiros, o sotaque doce dos anfitriões, o andar num chão estranhamente fofo, assistir ao amanhecer e sentir o quentinho dos primeiros raios de sol, e tantas mais boas sensações… que saudades! Por me trazeres de volta às palhinhas, muito obrigada… : )
    Bjs
    Isabel

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    1. Bem-haja, Isabel!
      Uros é realmente um local único, difícil (se não impossível) de esquecer :-).

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