25.11.14

Ispe. Iguaria a alta altitude




Ispe.

Talvez soe vagamente a chispe, para um português, mas não poderia ser mais diferente, tanto na forma como na substância. É um animal, comestível, é verdade, mas não um mamífero. É um dos peixes autóctones do lago Titicaca, e dos mais modestos. Minúsculo, diria mesmo, com 5 a 10cm de comprimento, prateado, num corpo esguio e hidrodinâmico. Mas o sabor não deixa dúvidas: é apuradíssimo, frito, confeccionando-se e consumindo-se à semelhança de pequenos jaquinzinhos (e não, não é um pleonasmo, o ispe é ainda mais pequeno que os pobres jaquinzinhos!).


Tive o prazer de conhecer esta iguaria numa pescaria para a qual fui convidado, numa madrugada de Janeiro. Lá é Verão, mas é também a época das chuvas, o que, associado ao facto de se estar a 4000m de altitude com picos nevados a toda a volta e, simultaneamente, juntinho ao equador, baralha por completo quaisquer comparações possíveis com a alternância de estações que temos nos climas temperados da Europa. Como estava a dizer, ao jantar o anfitrião disse-nos que iria pescar na manhã seguinte, com um dos vizinhos, e perguntou se quereria acompanhá-lo. Não demorei mais de 1 segundo a responder: "-Pois claro que sim!". Devo ter sido pescador em vidas passadas - adoro peixes. No prato, no aquário, em liberdade. Adoro observar peixes, acho-os animais bonitos, sublimemente adaptados ao meio em que vivem. Têm algo de profundamente ancestral, primário, no bom sentido da palavra. É deles, afinal, que todos descendemos! Aliás, uma das mais intensas experiências de vida selvagem que vivi até hoje (para além de dar de caras com um jaguar ao acordar, em plena selva de mangue no Delta do Orinoco, na Venezuela), aconteceu num mergulho em que encontrei um mero, pachorrento e sobredimensionado habitante dos mares dos Açores! Assomou de uma fenda na rocha, a 40 metros de profundidade, tendo eu, acima de mim, apenas a enorme coluna de água, frente a frente com o gigante. Na sua boca facilmente caberia a minha cabeça. Ainda assim, senti uma quase ternura inexplicável no seu olhar, uma candura a que não estamos habituados num animal de sangue frio e que raramente vemos vivo.



Voltando ao Peru e ao ispe, lá sai com o Elias e o vizinho naquela manhã cinzenta, com o deus Sol estranhamente ausente, ainda mal o dia havia nascido. Marco António, o filho, com 11 anos, seguia na frente do trilho, que desce rugoso até às margens do lago. Com uma agilidade e força insuspeitas para o seu corpinho de criança, salta para o barco de madeira e maneja os remos com precisão. O pai apenas supervisiona a operação, com uma seriedade distante no olhar, embrenhado quiçá em outros pensamentos. Entro também para a embarcação, em último, e sento-me a meio, de forma a baixar o centro de gravidade e minimizar o balanço. Do outro lado do embarcadouro vislumbro o tal vizinho, traje colorido a pintalgar a neblina uniforme que se propaga pela paisagem.

Elias explica que o lago está cansado, exausto de tanta pesca. Há 15 ou 20 anos eram sacadas de peixe de cada vez. Hoje, umas mãos cheias apenas... Com um olhar duro, de lobo do mar em potência (ainda que, suspeito, nunca tenha visto o oceano), Marco António perscruta o horizonte em busca das bóias que sustentam a rede de pesca. Umas remadas mais e chegamos. Lentamente a rede vai sendo subida pelas mãos ágeis e curtidas de Elias. Vazia. Confrangedoramente vazia, num aperto de coração que só aumenta à medida que no bojo do bote se acumula a malha esverdeada, disforme, sem as saltitantes gotículas de prata que deixam a alma de um pescador iluminada...


Mas num ápice dá a operação por terminada. Ao fim de uns minutos, estamos prontos para recolher a terra. Elias e o vizinho, com as amuradas dos barcos a tocarem-se delicadamente, encantadas pela aragem andina, trocam cerimonialmente folhas de coca, que retiram de bolsas tricotadas à mão, pelos homens, como é tradição na ilha de Taquile. Depois, deitam algumas à água, em agradecimento pela pescaria, ainda que parca, e por estarem prestes a regressar sãos e salvos.



À chegada, um oleado azul servirá de mortalha aos poucos ispes que se sacrificaram por nós. Duas mãos cheias, não mais. Saborosas, indubitavelmente. Talvez pela escassez, talvez pelo esforço envolvido, souberam-me como o melhor beluga. Mas o mais marcante naquela madrugada foi a visão de uma forma de vida que sinto ameaçada, tão escassa já como os pequenos e elusivos peixinhos prateados...


Para os mais curiosos, eis a viagem na qual esta série de posts sobre os Andes teve origem: www.nomad.pt/de-machu-picchu-ao-salar-uyuni-com-antonio-l-campos



3 comentários:

  1. Anónimo27.11.14

    Como sempre, boas fotos, bom texto, mas sempre coadjuvados por belos lugares! Titicaca! ;-)

    Rui Vale

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  2. Que boca tão grande para peixe tão pequeno. Um texto que me transporta àquelas remotas paragens e ao ambiente do local. Ao convívio com gente modesta e simples, mas franca. E o excesso universal da exploração dos recursos naturais. Obrigado pelo texto e pelos belos registos fotográficos.

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  3. O Titicaca é mesmo um local de sonho, não tanto (ou não só!) pelas paisagens deslumbrantes, mas sobretudo pela experiência humana e civilizacional...

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