8.3.15

O gato e a gaivota. E a Hamburgo de Sepúlveda


Luís Sepúlveda é indiscutivelmente um dos mais criativos escritores da actualidade, eximio manipulador de palavras e conceitos, exemplo depurado do realismo mágico tão popular entre os escritores sul-americanos, na linha de Gabriel Garcia Marquez, capaz de fazer sonhar o leitor agarrado ao sofá, condensando em poucas páginas o que é necessário dizer, e não mais.

Depois de sorver com avidez O Velho que Lia Romances de Amor, oferecido por uma sábia e especial mão amiga, e numa altura em que a minha expedição pela selva amazónica já se vislumbrava no horizonte, não mais deixei de procurar ler a sua obra. E a certa altura cruzei-me com um romance, supostamente infantil: História de uma Gaivota e do Gato Que a Ensinou a Voar. Título longo para uma singela narrativa, que não pude deixar de conduzir às mãos da minha filha pré-adolescente. Apesar da resistência inicial - não tinha fadas, nem dragões, nem meninas-heroínas - acordámos que o leríamos a dois, ao fim do dia, antes de ir para a cama. E assim, ao longo de vários dias, fomo-nos inebriando pela história de Ditosa, a pequena gaivotinha que nasceu de um ovo posto pela sua mãe, moribunda devido a uma maré negra, na varanda de uma casa no porto de Hamburgo, território de Zorbas, um gato grande, preto e gordo! Cumprindo o último desejo da gaivota negra e suja do crude que a havia engolido na costa, Zorbas prometeu, pela sua honra, cuidar do ovo até que nascesse a gaivotinha, alimentá-la até que crescesse e, mais difícil ainda, ensiná-la a voar! Tarefa hérculea, para um gato, especialmente sendo grande, preto e gordo!


Com a ajuda inestimável dos seus companheiros do porto - Colonello, Sabetudo e Secretário - lutando contra a perfídia das ratazanas e do macaco Matias, Zorbas consegue os seus intentos, cumprindo a palavra dada, numa noite de intempérie que se tornou de bonança, ao sentir na sua escuridão o sonho tornado realidade: Ditosa voou!

Meses mais tarde revivemos esta história, na adaptação deste livro para teatro infantil, em Lisboa. Num velho teatro italiano, num misto de ingenuidade cenográfica e charme vintage, com cenários montados em grossas cordas operadas através de roldanas de madeira, as letras transmutaram-se em personagens de carne e osso, com uma óptima caracterização! Mas a cereja em cima do bolo desta história viria ainda depois, num invernoso mas soalheiro dia de Janeiro, em que o frio pujante lutava com um débil astro-rei. Por terras germânicas, foi por isso com uma contida alegria que pude mostrar ao meu rebento, ao vivo e a cores, o cenário, real, onde esta história decorre: o porto de Hamburgo, no norte da Alemanha.


 


Percorrer, com a alegria infantil da descoberta, as ruas desta grande cidade, espiolhar com o olhar o segundo maior porto da Europa e um dos maiores do mundo, sob a batuta de um gato imaginário, não tem preço. A viagem tem destas coisas: tanto pode ser algo épico, remoto e exótico, como uma experiência familiar, de conhecimento gradual de territórios mais próximos, mais cosmopolitas, mas não menos deslumbrantes... Obrigado, Luís!


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