3.11.15

Por entre as sombras



Como qualquer português, o meu legado cultural passa inevitavelmente pela herança judaico-cristã, na qual fui educado e que, mesmo para os católicos não-praticantes, representa uma forte baliza de valores, referências e princípios. Religiões à parte - que, em demasiadas situações ao longo da história mundial, estiveram ao serviço da ganância cega e da sede de poder - há algo de profundamente místico em muitos templos, sejam eles de que credo forem, em que zona do globo seja. Há alguns meses atrás, referia exactamente isso num texto, a propósito da minha mais recente visita a Istambul.

Desta vez foi em Viena. Nas deambulações mais ou menos errantes pela cidade das valsas, não foi na Ópera que me foquei. Foi, entrando ao crepúsculo e saindo já noite fechada, na catedral de St. Stephens (ou Stephansdom, em alemão), uma das mais imponentes silhuetas do skyline da capital austríaca. Sede da Igreja Católica no país, a sua origem remonta ao séc. XII, construída em estilos romanesco e gótico, com um impressionante telhado multicolor e de agulhas apontadas ao céu, atingindo os 136m de altura no ponto mais alto! Foi aqui que muitos dos grandes eventos da história europeia ocorreram, sendo igualmente o epicentro da poderosa dinastia Habsburg.




No entanto, para além de toda a imponência exterior e dos pergaminhos históricos que representa, foi no seu interior que me senti mais impressionado. A escuridão imperava e, estranhamente em locais turísticos, e apesar das largas dezenas de pessoas que circulavam lentamente pelos corredores, havia silêncio. As velas, bruxuleantes, emprestavam uma ambiência etérea ao espaço. Alguns rostos, em oração, fechados, solenes, eram intermitentemente iluminados pelos laivos dourados o pavio em chama. Num canto, um miúdo de telemóvel em punho fazia experiências fotográficas com o cenário, quase cinematográfico.

O jogo de luz e sombra só pode ser descrito como magistral - imagino o quão aterrador seria para os crentes da Idade Média aqui entrar, esmagados pela escala, pelo olhar petrificante de um Cristo torturado e ensanguentado, pela palavra irada de bispos e cardeais, pelo terror das provações do inferno e a miragem prometida do paraíso... Se hoje é tão fácil manipular consciências de multidões, nesse tempo ainda mais! Percorro, com atenção, e com a magicamente silenciosa X100s discretamente em punho, a longa nave, olhando o chão geometricamente disposto, em tons de branco e negro, intercalado pelas enormes colunas de pedra, torneadas, brilhantes, enquanto escuto os meus próprios passos. Há algo de espiritual, ali. Que ultrapassa, de longe, os mundanos e imperfeitos assuntos da política religiosa...

Saio. Para a noite escura, para as luzes de néon, para as montras das lojas de luxo. Meia dúzia de passos e o mundo mudou.

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